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domingo, 22 de março de 2015

As vozes que ninguém ouve: Vozes anoitecidas (1986), de Mia Couto

"Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?” e diz: “Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos.

Ano passado vi uma promoção de livros da Companhia das Letras. Vozes anoitecidas (1986), do moçambicano Mia Couto, era um dos títulos com desconto, e como eu já tinha ouvido falar muito no autor, comprei. Uma das falhas da minha formação em inglês é o distanciamento das publicações literárias em português. Há muito o que se ler em português; muita gente nova ainda a descobrir. Não é o caso de Mia Couto, escritor já consagrado, mas para mim era novidade e eu decidi não adiar mais a leitura.

Edição da Cia das Letras, 2013


Vozes anoitecidas é um livro de contos que, na minha opinião, dão voz àqueles que não têm voz. São pessoas humildes, idosas, sofredoras, que acreditam em forças sobrenaturais. O português que falam é uma mistura de vocabulário e sintaxe africana. São as vozes anoitecidas do título, sofridas pelo fim da guerra da independência. As situações são descritas de maneira simples, mas muito poderosa. Parecem os "causos" que avós do interior geralmente contam. A linguagem parece compreender o mundo.



Tal maneira de escrever me lembrou muito meu escritor brasileiro favorito, Guimarães Rosa. A escrita de Mia Couto, pelo menos nos contos de Vozes anoitecidas, não causa tanto estranhamento quando os dizeres de Riobaldo em Grande Sertão. Mas a beleza das frases, o poder dos ensinamentos sobre o mundo, a vivacidade das palavras remete a Guimarães. Não à toa o autor do prefácio de minha edição, Luís Carlos Patraquim, se refere ao autor de Sagarana. São dois escritores que entendem que a linguagem constrói o mundo - e que as personagens simples, aquelas que parecem não saber muito, são as que mais podem mostrar a complexidade da vida.


-Tio: próximo ano posso ir na escola?
Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:
- Vais, vais.
 - É verdade, tio?
 - Quantas bocas tenho, afinal?
 - Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.
 - Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.
 O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho. era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:
- Vens pousar quem, ndlati?
Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.

*   *   *






António Emílio Leite Couto, mais conhecido como Mia Couto, tem 59 anos e cerca de 25 publicações. Venceu o Prêmio Camões de Literatura em 2013.

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